Do catálogo da exposição "A arte como experiência do real"

Miguel von Hafe Pérez


Miguel Leal anuncia desde logo na primeira sala o âmbito criativo desta sua terceira exposição individual: dois monitores apresentam imagens a preto e branco captadas no interior do próprio espaço expositivo, enquanto uma câmara apontada para o exterior capta imagens a cor, que passam num terceiro monitor presente na mesma sala.

Trata-se, assim, de confrontar o espectador com a apreensão mediatizada do real, armadilhando-se essa mesma apreensão com o simples facto de se diferenciar a projecção de imagens a cor ou a preto e branco; com efeito, a imagem a cor do exterior remete para uma realidade mais tangível do que o preto e branco das imagens do interior da galeria, espaço "artístico", logo funcionalmente mais controverso, restrito e hipoteticamente inapreensível. A dificuldade que o senso comum encontra em justificar a necessidade da arte, se não se ancorar na pior e mais temível das suas supostas qualidades, o decorativismo, empurrou o artista para terrenos marginais ao puro esteticismo, com o intuito de alertar o espectador para o modo como ele se posiciona perante o sistema imagético alargado em que hoje em dia se vê enquadrado. As imagens documentais, noticiosas, publicitárias, artísticas ou virtuais entrecruzam-se numa amálgama de intencionalidades díspares, onde por vezes a capacidade manipuladora dos respectivos autores excede largamente a capacidade crítica dos potenciais receptores.

Alertado para este facto (ou, numa perspectiva mais pessimista, mas se calhar mais realista, irritado porque não seria isto que esperaria de uma "exposição de arte"), o espectador passa para as restantes salas e é confrontado com objectos fotográficos onde a dicotomia cor/preto e branco é igual e intencionalmente explorada: uns reproduzem as mãos de artistas importantes na definição do percurso criativo do nosso século (a preto e branco e retiradas de um livro ou de uma revista), outros reproduzem mãos de modelos anónimos (a cor). Mais uma vez a esfera artística se caracteriza pela falta de cor, efeito distanciador do real, ao que acresce o granulado não disfarçado, indicativo claro de uma apropriação fotográfica. Mas contêm estas imagens um potencial de veracidade menor do que as imagens a cor que lhes são justapostas? Não, porque Miguel Leal as identifica, remetendo-as de imediato para o campo conotativo das respectivas personalidades retratadas, do seu lugar na história da arte e, inclusivamente, do lugar que as mesmas terão no espaço de referências formais ou intelectuais do autor agora em questão.

Aqui deparamos com um ponto nevrálgico desta exposição: a escolha dos artistas; escolhendo Mondrian e Duchamp, Miguel Leal aponta para dois artistas genericamente identificados como paradigmáticos para dois pólos referenciais da modernidade: o construtivista/abstracto e o conceptual. Ficam de fora, portanto, o surrealista, embora este não se reclame da modernidade, antes reivindicando uma transtemporalidade criativa, e fundamentalmente, o expressionista. Nem Van Gogh, nem Schiele (as mãos mais perturbantes da pintura ocidental), nem Bacon, por exemplo.

Por outro lado, a escolha de Beuys, Warhol e Broodthaers indicia um claro envolvimento com pressupostos fundamentais para a contemporaneidade, que me abstenho de aqui comentar, dado que este tipo de referências visa incutir no espectador a curiosidade de ele próprio tentar descobrir o lugar de interpretação da presente proposta com as propostas elaboradas pelos autores anteriormente referidos. Um indício, porém: se começar nos anos sessenta e no modo como a arte pretende alargar o seu espectro interventivo para o território do social, e se procurar entender como o conceito se sobrepõe frequentemente, e a partir desta altura, ao objecto artístico em si mesmo, então estará no caminho certo para melhor apreender esta exposição, meticulosamente pensada para o tornar mais crítico perante as imagens que lhe são constantemente impostas.

Abril de 1995

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