Arte e realidade

Miguel Leal

Encontramo-nos perante a evidência de um mundo que toma a forma de um mutante, simultaneamente real e aparente, comprometendo-nos rapidamente num processo de alteração e desgaste, envolvendo questões sensoriais, do plano social e político, e da nossa própria sobrevivência física.

No plano sensorial, a espiral de novas tecnologias não tem deixado de nos propor novos relacionamentos com o mundo envolvente. Neste contexto a visão tomou preponderância relativamente aos outros sentidos, servindo-se de próteses, capazes de alterar exponencialmente as faculdades do olho humano, como seus prolongamentos. Em paralelo desenvolveram-se outros sistemas de potenciação das capacidades do corpo humano que contribuiram decisivamente para perturbar a delimitação espacio-temporal da realidade. As tremendas modificações implicadas neste processo, que fizeram a nossa ideia do mundo, ao longo dos últimos 150 anos e especialmente durante este século, passar a depender em grande parte de intermediários (objectos, imagens, relatos,...), nem sempre têm sido acompanhadas de uma reflexão sobre os novos conceitos que envolvem.

É então a tecnologia, e a sua inovação permanente, que torna o "desregramento dos sentidos um estado permanente", possibilitando assim "uma abolição final das diferenças, das distinções entre natureza e cultura, utopia e realidade"(1), num processo de aceleração, homologação e catalogação constantes, onde tudo se alimenta de energia cinética, capacidade normalizadora e de armazenamento. O que está aqui em causa é o sujeito enquanto portador de inércia, pois, apesar do efeito acelerador (somos todos bólides, em sentido real e figurado), a mediatização, tal como grande parte dos elementos acessórios da pós-industrialização, ameaça funcionar como um sonífero, contribuindo para a construção de uma "sociedade de dormentes"(2), baseada na perda da experiência.

Esta desregulação dos sentidos desenvolveu-se paralelamente e em consonância com a gradual mercantilização global, criando uma esfera separada onde "tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação"(3), num processo de distanciamento, também ele gradual, entre a realidade vivida e ideia que dela fazemos. É uma operação de dissuasão que não se ausenta, não se esconde, dissimula-se e simula ao mesmo tempo, fingindo constantemente, mas sempre na nossa presença! Todo o dispositivo mediático nos é acesssível, ou melhor, a nós acede, envolvendo-nos de forma aparentemente irrevogável.

O fenómeno poderia ser descrito como uma duplicação da realidade ou como a substituição "de todo o processo real pelo seu duplo operatório"(4). Ficamos perante uma deslocação para um outro plano, onde o poder procura obliterar, iludir e ao mesmo tempo, paradoxalmente, perpetuar essa mesma realidade.

Em simultâneo, a especialização que envolve as diversas áreas de actuação, criando esferas autónomas e não raras vezes impermeáveis, contribui de forma decisiva para impedir a necessária conexão com o real, não esquecendo "(...)a especialização do poder, a mais velha especialização social"(5). Este desafio coloca-se às várias disciplinas que atingiram um certo grau de autonomia, revelando-se a necessária aproximação ao presente indispensável para que se possam estabelecer as bases de uma cultura de resistência e interferência, consciente e crítica do seu enquadramento e que não se limite a uma visão parcial e incompleta de um sistema que tudo estruturou para impedir esse mesmo projecto crítico.

"A liberdade (relativa) da arte perante a praxis vital é a condição da possibilidade de um conhecimento crítico da realidade. Uma arte que já não seja erguida sobre a praxis vital, mas dela se encontre totalmente separada, perde com a distância que a separa também da capacidade de criticá-la".(6)

Tal como na sociedade em geral, também na esfera da arte o desaparecimento representa a verdadeira (aparente) entrada na realidade. Este paradoxo resulta num cada vez maior afastamento entre a vida e a arte. Esta última, enquanto parte de um subsistema, e funcionando sob as regras de um sistema mais vasto, institui-se, distanciadamente e de modo especializado, como duplo da realidade.

Qualquer abordagem destas questões deverá ter em conta o estatuto de autonomia da arte, que está ligado, na sua génese, à perda gradual do seu valor de uso (função social). Aqui, a abordagem da relação entre arte e técnica, e do papel da segunda na emancipação da primeira, torna-se essencial. Se por um lado, "a decadência da função representativa"(7), estreitamente ligada às inovações tecnológicas, tem aqui um lugar decisivo, não deixa de ser verdade que estas modificações são indissociáveis do desenvolvimento da sociedade na sua totalidade.

A arte ter-se-á então emancipado "tanto da vontade de exprimir o seu tempo quanto da intenção de antecipar um tempo vindouro"(8) , numa perda de conexão com o tempo real, com o "espírito do tempo". O anything goes que recobre esta situação de indiferenciação é propício ao exarcerbar da subjectividade, contrária ao desejável apagamento do sujeito que quer tornar-se "lugar de trânsito"(9), veículo efémero do sentir e do pensar o mundo.

É tomando como ponto de partida esse conceito de autonomia da arte, uma categoria complexa, que se deve proceder a uma crítica da produção artística e das suas possibilidades de integração na sociedade. Este projecto, já tentado e falhado pelas vanguardas do início do século, tem-se revelado como referencial para alguns dos mais interessantes desenvolvimentos da arte contemporânea, e é hoje imperativamente actual. Qualquer possibilidade de reconstrução da arte, ou seja , de redefinição do seu papel e enquadramento social, não poderá deixar de pensar, então, a relação urgente, e na minha opinião indispensável, entre a produção artística e o presente (ou realidade presente), entre a arte e o mundo ao qual a obra tem de pertencer.

Março de 1995

 

(1) Virilio, Paul; "Esthétique de la disparition", pág.107 (Paris, Éditions Balland, 1980)
(2) Idem; ibidem.
(3) Debord, Guy, "A sociedade do espectáculo", pág.1. (Lisboa, mobilis in mobile, 1991)
(4) Braudillard, Jean, "Simulacros e simulação", pág.9 (Lisboa, Relógio D'Água, 1991 ).
(5) Debord, Guy, ibidem, pág.17.
(6) Bürger, Peter; "Teoria da vanguarda", pág.92 (Lisboa, Vega, 1993 ).
(7) Idem, ibidem, pág. 64.
(8) Perniola, Mario; "Enigmas- O Momento Egípcio na Sociedade e na Arte", pág.123 (Lisboa, Bertrand Editora, 1994)
(9) Idem; Ibidem, pág.76.

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