Ensino artístico e investigação: algumas diferenças operativas

Miguel Leal

Boletim da Universidade do Porto, Ano XII, nº37, Fevereiro 2005, pp.30-32

Escrever sobre a relação entre ensino artístico e investigação — no sentido em que esta é entendida no contexto universitário — é antes de mais uma tarefa prospectiva. Não havendo uma tradição para evocar ou sequer um mero conjunto de experiências que a prática possa ter estabelecido, tratar-se-á sobretudo de imaginar um espaço próprio para as artes num meio universitário que só muito recentemente acolheu as velhas escolas de Belas Artes. No entanto, nesta reflexão é impossível esquecer uma outra prática, com as suas especificidades próprias,  que foi afirmada com o decorrer da já longa história das escolas de ensino artístico; tal como é incontornável reclamar para os territórios das Artes Visuais, das Artes Plásticas ou menos prosaicamente, das antes chamadas Belas Artes, uma diferença operativa face à grande maioria dos domínios que se abrigam nas universidades. Aliás, a própria integração das antigas Escolas de Belas Artes do Porto e de Lisboa no sistema universitário — seguindo soluções idênticas levadas a cabo noutros países — ainda hoje suscita dúvidas e desconfianças quando sopesadas as vantagens e desvantagens dos seus efeitos. Na verdade, há nesse processo uma série de aspectos que resultam numa perda de elasticidade e numa obrigatoriedade de conformar a estrutura organizativa e os modos de funcionamento de cada escola a uma norma que nem sempre parece a mais feliz para as necessidades do ensino artístico. Contudo, uma análise mais fria deve lembrar-nos que o fenómeno é ainda demasiado recente e que parte dessas resistências serão resultado de uma situação que, por exemplo, no caso da criação da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), não tem sequer dez anos. Daqui a mais algum tempo, analisados então os possíveis ganhos e perdas, as escolas integradas nas universidades terão ficado a ganhar se forem capazes de se adaptar a um novo modelo e, mais difícil ainda, se conseguirem convencer os seus novos parceiros da sua especificidade e da sua diferença. Julgamos mesmo que estará neste último ponto uma das saídas possíveis para encontrar um modelo de ensino universitário para as artes e, naquilo que nos interessa aqui,  um lugar para a investigação artística no seio das universidades.

 

A dificuldade em encontrar um modelo para a relação entre ensino e investigação no campo artístico tem muito a ver com a impossibilidade de importar soluções oriundas de outras áreas científicas. Não nos podemos esquecer que mesmo em situações tão básicas como a realização de provas de mestrado ou doutoramento tudo se encontrava por fazer até há pouco tempo e ainda agora muito está por definir. A partir do momento em que, com a integração no sistema universitário, passou a ser possível às antigas Escolas de Belas Artes conferir o grau de Mestre ou Doutor, tornou-se necessário encontrar um modelo que pudesse responder às particularidades da investigação nos domínios artísticos. A maior dificuldade centrou-se no enquadramento dos trabalhos de índole teórico-prática, não parecendo oferecer grandes dúvidas que essa relação entre a teoria e a prática resultará de uma necessária complementaridade entre as duas. Mas que peso atribuir a cada uma das partes do trabalho: o trabalho prático ou de atelier e a componente escrita? Como garantir as trocas entre as duas metades do trabalho sem  tornar essa divisão numa armadilha para a natureza própria da investigação artística? E como respeitar a autonomia do chamado trabalho prático sem deixar de responder às exigências da avaliação académica dos seus resultados? Estas são questões que se encontram ainda em aberto e, apesar da natureza muito diversa dos trabalhos de investigação realizados no contexto de um mestrado ou doutoramento nas actuais Faculdades de Belas Artes, é nesse território do chamado trabalho prático, das suas modalidades e da sua articulação com a componente escrita, que surgem as maiores dúvidas e indefinições.

Por mais contraditório que isso possa parecer dada a presença secular de um ensino artístico, existe uma natural dificuldade de conjugar a arte com a academia e esse não é, de todo, um problema novo. Ter-se-á, porventura, agravado com as novas exigências que os modelos universitários impõem. Sigamos o exemplo que nos é dado pelos tão actuais e tão polémicos efeitos dos Acordos de Bolonha.

A coberto das boas intenções que parecem ter presidido às propostas de Bolonha, e que se centram sobretudo na necessária e desejada uniformização do ensino superior no espaço alargado europeu, poderão estar a cometer-se alguns excessos de interpretação do grau de uniformização  desejável, esquecendo-se que, entre outros aspectos, o ensino superior se encontra no final de um percurso escolar que é tudo menos uniforme de país para país e que existem especificidades que nem sempre se poderão conformar aos modelos impostos. Esse será o caso, em nossa opinião, do ensino superior artístico. Algumas áreas do ensino artístico poderão estar resguardadas pelo facto de se encontrarem numa situação de excepção dentro do ensino superior, como as escolas ligadas à música e às artes do espectáculo (que também, diga-se, têm sabido resguardar-se). No caso das escolas que ministram cursos ligados às Artes Plásticas e ao Design, hoje quase na totalidade integradas em Universidades ou Institutos Politécnicos, a defesa da sua especificidade e da diferente natureza do ensino que aí é ministrado é tarefa bem mais complicada. Uma interpretação cega e economicista daquilo que vem sendo anunciado pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior poderá levar à colocação num mesmo saco de formações tão diversas como, por exemplo, Educação Física, Filosofia, Engenharia ou Artes Plásticas, como se para cada uma destas áreas não fosse possível encontrar diferentes soluções sem contrariar os Acordos de Bolonha.

Como sabemos, a aplicação dos Acordos de Bolonha terá muito em especial efeitos nos modelos actuais de financiamento do ensino superior e irá colocar sobre as instituições uma cada vez maior pressão na procura de soluções que garantam uma qualidade do ensino e da investigação. E se, hoje, uma Faculdade como a de Belas Artes já chegou ao limite nessa gestão dos recursos que lhe cabem por direito, anunciam-se garantidamente tempos ainda mais difíceis. É certo que os Acordos de Bolonha poderão ajudar também a reformar os modelos curriculares e a estrutura das escolas de ensino artístico que têm, justamente, procurado mudar muito pouco nas últimas décadas, mas irão acentuar ainda mais a tendência para a perda de uma especificidade e de um espaço próprios.

Vejamos então, rapidamente, três aspectos que parecem centrais para a definição dessa especificidade operativa.

a)     Escala
Por natureza, o ensino artístico obriga a uma relação mais próxima entre alunos e professores e à disponibilização de recursos muito para além daquilo que está padronizado para outras áreas. Por regra, uma escola de ensino artístico deixará de funcionar quando não for possível mantê-la numa escala humana em que todos se conhecem de algum modo. Nas últimas décadas tem-se assistido a uma subversão destes princípios para poder cumprir as exigências de financiamento baseadas na ratio. O grande problema estará então em saber como conciliar essa pequena escala com tudo aquilo que o ensino e a investigação exigem de uma instituição universitária, essencialmente no que respeita aos recursos humanos e materiais.

b)     Natureza
A matéria do ensino e da investigação nas áreas artísticas é de natureza essencialmente especulativa e nessa medida aproxima-se muito daquilo a que se convencionou chamar investigação pura. Há, é certo, algumas áreas onde a aplicação dos resultados da investigação poderá ter um papel importante e em que existe um mercado de trabalho preciso; ainda assim, será sempre muito difícil exigir ao ensino artístico uma resposta plena aos modelos que tendem a valorizar uma aplicação prática dos resultados da investigação e uma forte ligação do ensino ao mercado de trabalho.

c)      Diferença
Não sendo a arte uma ciência, como classificá-la? Haverá lugar para a acientificidade da arte num contexto universitário? A resposta só poderá ser afirmativa se não tentarmos fazer do ensino artístico aquilo que ele não pode de todo comportar, sob pena de o transformarmos numa outra coisa. Na verdade, se a arte não é uma ciência, a investigação que se faz sobre arte pode e deve ser científica e no ensino artístico essas são duas realidades que sempre conviveram uma com a outra.

 

Caberá ao ensino artístico saber afirmar esta diferença operativa aqui esboçada em três pontos que não pretendem, de modo algum, ser exaustivos. Será também assim que se poderá encontrar um espaço próprio para a investigação artística em contexto universitário.

Em primeiro lugar assegurando uma economia de escala adequada em que as unidades de investigação sejam integradas nas próprias escolas, garantindo assim um efectivo cruzamento entre o ensino e a investigação e evitando a dispersão de recursos. Esta integração deverá ser feita de modo a reservar a autonomia dessas unidades e a possibilidade de criar espaços de investigação especializada que cubram as várias áreas que se abrigam em escolas como a FBAUP.

Em segundo lugar, reclamando uma especificidade da área artística, pelo menos nos domínios que lhe são naturais, procurando assim garantir que a avaliação dos seus desempenhos não tenha que seguir exactamente aquilo que está estabelecido ou em fase de aprovação para outras áreas. Este aspecto é tanto mais importante quanto a consciência que a maioria dos critérios valorativos da investigação em Portugal são meramente quantitativos e expressos, por exemplo, no número de artigos e citações em publicações de referência ou no número de doutorados envolvidos, esquecendo-se que existem áreas em que esses critérios só muito parcialmente podem ser aplicados. Na verdade, o número actual de doutorados nas áreas artísticas em Portugal é extremamente reduzido e não daria sequer para completar os quadros de uma unidade de investigação de referência; por outro lado, não existe uma rede internacional de revistas académicas ou científicas onde possam ser publicados os reclamados artigos, e sem artigos publicados dificilmente se poderá ser citado. E o que dizer de toda a investigação que em arte não resulta num artigo ou numa comunicação e não lida com o jogo circular do texto e da citação? Onde enquadrar uma investigação artística que resulta na produção de objectos, de imagens, de sons, de actos performativos ou outros que não encontram sequer um espaço para serem enumerados nos formulários que regularmente vamos preenchendo, a pedido das mais diversas entidades, e que servem como instrumento de avaliação das instituições em que trabalhamos?

Finalmente, como evitar transformar a investigação e o ensino artísticos numa coisa estranha à própria arte e imposta por referências que lhe chegam de fora?  Num momento em que se começam a dar os primeiros passos em Portugal para encontrar um modelo para a investigação universitária no campo das artes e em que,  como se disse, quase tudo se encontra por fazer, convém não cair na armadilha de adaptar a especificidade do campo artístico a modelos que lhe são alheios, apenas para conseguir um mais rápido reconhecimento institucional ou um financiamento mais risonho. O que não invalida que haja muito a aprender com os modelos de investigação e ensino universitários, durante tanto tempo estranhos às escolas de Belas Artes, mas tão só que se deve escolher e importar apenas aquilo que nos puder ser útil. Convém, pois, não cair no logro de querer ser como os outros à força, de querer ser igual aos outros apenas para ter  aquilo que os outros têm ou ser aquilo que os outros são, até porque isso será muito provavelmente o primeiro passo para acabar com o ensino artístico como modelo de complementaridade e diferença que também é fundamental para transformar o ensino universitário numa outra coisa, mais aberta ao mundo e menos fechada sobre si própria.

 

Porto, 10 de Novembro de 2004