Miguel Leal: Projecto Bunker (1996-99)

Cecilia Casorati


publicado em http://www.anamnese.pt (2005)

Segundo Ludwig Wittgenstein a única tarefa possível para a filosofia contemporânea diz respeito à linguagem. Se isto é válido para a filosofia, sem receio de parecermos categóricos, pode perfeitamente referir-se também à arte contemporânea.
Como em todos os sistemas aparentemente fechados, também o da arte terá, pois, como origem, objecto e verosímil meta a experimentação linguística dos seus meios.
No seu célebre ensaio Le degré zéro de l'écriture - publicado em finais dos anos cinquenta - Roland Barthes auspiciava uma espécie de nova Revelação da Literatura (auspício paradoxalmente céptico porquanto limitado no espaço da Utopia), que estava a preparar o seu advento mediante uma escrita que deslocasse o seu jogo em campo neutro.
A escrita - e naturalmente também a arte - transitava por uma rua sem saída ou, pelo menos, onde parecia que todas as saídas lhe eram barradas. Com efeito, por um lado dispunha de um corpus de regras e convenções ("o mito da Literatura") que afastavam o escritor do presente; por outro, caso o escritor quisesse tornar disponível a sua escrita para a "frescura actual" do mundo, só podia valer-se de "uma língua esplêndida e morta".
A tragicidade e a inadequação instrumental do artista perante o mundo (o exterior) tem sido encarada, desde os anos sessenta, através de metodologias linguísticas "neutrais", que todos conhecemos, tal como a arte conceptual, a Minimal art e a Pop art.
Após os anos oitenta, em que essa neutralidade voltou a misturar-se com as linguagens do "passado" dando origem a anacrónicas e inconcludentes elaborações, emergiram experimentações mais significativas que têm procurado revitalizar no sentido do neutro a esplêndida e morta língua da arte.
Utopicamente Barthes julgava que o problema da escrita se iria resolver através de uma superior obra moralizadora que levaria a uma "universalidade" em que escrita e sociedade seriam capazes de conviver de forma homogénea.
Mais realisticamente e com a vantagem do tempo, o artista - não podendo alcançar linguisticamente a 'frescura do mundo' (admitindo que a possua) e a alienação da História (mas será, afinal, necessário?) -  pensou reforçar a autonomia e a diferença do seu próprio sistema linguístico, reformulá-lo de forma transitiva.
No catálogo publicado por ocasião da exposição “Projecto Bunker (1966-99) no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Miguel Leal escreve:” And if art is still an interesting territory to inhabit, this is largerly due to its capacity for constantly eluding corpselike rigidity, (…) Just like life, art adds an elastic variability to a determined conceptual rigor and this is one of its virtues: the way it makes its own life increasingly organic.” 
Trata-se de uma afirmação invulgar e inteligente que demonstra que a arte actual, tendo há muito abandonado o papel vanguardista de guia e instrumento do ver, já não ocupa uma posição outra – ainda que adjacente – em relação ao mundo, mas que se situa nos interstícios da realidade, ou melhor, na linha horizontal da realidade.
O “Projecto Bunker” de Miguel Leal coloca-se conscientemente no interior desta horizontalidade, deste espaço "estendido entre a lógica das suas ideias e a substância da sua presença"; um espaço que  brota das obras e que, contemporaneamente, é imanente ao mundo. Com Merleau-Ponty, podemos afirmar que essa horizontalidade nos oferece contemporaneamente o objecto e o sujeito, permitindo-nos – mais uma vez  - redefinir o mundo, sem  cairmos  nas características dicotomias tradição/modernidade, real/virtual, universal/local, etc., mas agindo no seu interior.
No seu trabalho, Miguel Leal não repropõe a já gasta relação entre arte e realidade; não exibe o real, mas fala dele através de pormenores concretos - não simbólicos - , amiúde aparentemente invulgares ou prescindíveis  para o sistema de imagens que domina o mundo. Desta forma a obra abre-se à reflexão sobre o significado da imagem como momento essencial da  investigação; torna-se um lugar habitado e não simples meio de "informação" ; ou para utilizar as palavras de Derrida : "Neste espaço suplementar de duplicidade - e não pluralidade – a imagem torna-se presença  e ao mesmo tempo  delegação, e o signo esvazia e integra a natureza."


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