Amizade sob o signo de Saturno

‘Amizade’ é a exposição dos finalistas da Licenciatura em Artes Plásticas -Multimédia da FBAUP, um dos momentos de apresentação dos resultados em processo do seu trabalho de estúdio ao longo deste ano. Apesar do título, não se trata de um exercício sobre a amizade. É amizade em estado puro, sem mais explicações, um exercício colectivo e partilhado da liberdade.

  1. SATURNO

Na antiga Roma, no fim do ano, celebravam-se as festas chamadas Saturnalia. Eram momentos de alegria e festa que tinham também um lado perturbador e sacrificial. Realizadas em honra de Saturno, diz-se que tinham um carácter carnavalesco, pondo em jogo a identidade individual e a rigidez dos regimes sociais. No meio dos banquetes, os senhores faziam de escravos e os escravos de senhores, os homens vestiam-se de mulher e as mulheres de homem. Elegia-se um Senhor das festas, com o poder de dar ordens absurdas e caprichosas, alguém destinado ao desgoverno de um mundo caótico e imprevisível. Baralhavam-se as normas sociais e jogava-se com os papéis atribuídos a cada um. As festas eram pretexto para a licenciosidade, o jogo, os excessos e a inversão do rumo normal da vida. Tratava-se de um momento de libertação de energia, de inocência e, talvez, de abertura ao ócio produtivo.

A Saturnalia seria a celebração de um reino utópico. Todos sabiam que a suspensão de certas normas, o nivelamento social, o transformismo e a partilha desses dias eram temporários e tinham limites e que, no final das festas, tudo voltaria a ser o que era. Ainda assim, a simples construção temporária desse espaço comum era o sinal de um mundo por vir, um mundo onde em lugar das amarras sociais, políticas e económicas, a liberdade e a alegria seriam possíveis.

 

  1.  AQUI PRATICA-SE ARTE

No mármore que cobre a grade à saída de uma das aulas do Pavilhão Sul, encontra-se uma gravura em bruto na pedra: ‘aqui pratica-se arte’. E é a palavra ‘praticar’ que dá todo o sentido a esta frase e que ressoa no trabalho da turma de finalistas multimédia. ‘Amizade’ é uma exposição que revela a ‘prática’ da arte, em vários sentidos.

Os projetos destæs estudantes têm uma fluidez medial e resultam de uma prática que se faz do seu próprio fazer. Todos eles destilam uma qualidade e uma capacidade performativa próprias, misturando disciplinas e recusando qualquer entendimento rígido da prática artística e dos seus códigos, atravessados como são por agências múltiplas, mutantes e colectivas.

  1. MICOSE

Os fungos são seres misteriosos e incompreendidos, com diversas funções ecológicas. Entre eles, estão os parasitas, leveduras e saprófitas, responsáveis pela decomposição da matéria orgânica e dos simbióticos, as micorrizas.

A sala de aula aparece-nos aqui como entidade subterrânea e assinada de criação. Parece que devido à porosidade da prática – micose artística – cresceram fungos, que por sua vez se transformaram em parasitas e micorrizas. Parasitas múltiplos e mutantes que materializam formalmente a decomposição; microrrizas que afirmam a instabilidade da colaboração e da partilha como seu motor, num desafio às noções mais convencionais de autoria, individualidade, ou mesmo de identidade. A prática é aqui vista, ao mesmo tempo, como coisa una e múltipla: uma agência coletiva por oposição à ideia de que o ensino artístico é centrado em exclusivo numa qualquer subjetividade autoral de raiz modernista.

  1. WHORE WHORE

O que está além, dentro, dentro, diante do espelho? Talvez uma reviravolta transformadora e utópica? Um ser com lábios com uma cabeça que muda de essência a cada dia. Um drag em que não sabemos se o dentro é fora ou se o fora é dentro. Um mantra ritualístico que cresce com um eco do além-além-de-aqui: WHORE WHORE.

‘Amizade’ é também um exercício trans(formativo) que inverte a lógica espacial da FBAUP. O Museu e restantes espaços expositivos são agora, literalmente, o estúdio da turma. Inversamente, o estúdio, no Pavilhão Sul, bem como outros locais da escola, transformaram-se em espaços de exposição, apropriados e ocupados pelos estudantes. O espaço de exposição é o espaço de trabalho; o espaço de trabalho é o espaço de exposição. Up is down, down is up.

Há, pois, nestes gestos transformistas – WHORE WHORE – um desafio aos esquemas rígidos que definem, de um modo geral, a academia.

  1. SALDOS

E, como tudo é um e um é múltiplo, não poderia faltar aquele lugar de sonho, esse mundo de falso excedente, de opulência, materializado na gnose da ideia de ‘saldo’. Assim, expõe-se – com um tom de humor saturnino – a escassez de recursos e a dificuldade de acesso dos alunos àquilo que, em última análise, lhes pertence: a escola. Existe uma escola por vir? Não sabemos, não nos é dada uma resposta. ‘Amizade’ ensina-nos apenas que a única forma de continuar é praticar, praticar, praticar. Pode não haver mais uma capa de telemóvel no planeta, nem mesmo uma única obra de arte. Mas há uma atitude: às vezes é lisonjeira, às vezes é desafiadora, mas é sempre política.

Essa prática – e não a arte – só é prática quando é coletiva.

 

Miguel Leal
Virginia de Diego

Maio de 2024