Com Fim, On~line exhibition and catalogue, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Julho de 2020
Boats, islands and quarantines
Islands have always fed our imaginary. From unknown or desert islands to the ones standing far away, lost in the middle of the vast ocean, the idea of an island, as an autonomous unit capable of creating its own reality, is the image of utopia, of desire, of fantasy or enigma. Often, as a counterpoint, they have served as an undesired place of exile for criminals or outcasts of this world.
Likewise, the boat, as a sort of artificial island, movable and manoeuvrable, works as a place of exception that excludes itself from the reality of the world’ and its things. We board a boat to lose contact with the world, in the same way we dock on an island to restart everything from scratch, sometimes willingly, some others forcefully, as with the punishment of exile.
Above everything, islands and boats do not only share their condition of isolation and the heterotopic imaginary of the realization of a world outside the world. Islands and boats are linked because the only way to alter the islands condition is by opening navigation routes that shed their isolation, therefore building imaginary constellations between points separated by the oceans. For islands and boats, the desert is the space around, the territory without coordinates from Lewis Carrol’s empty map in The Hunting of the Snark. It’s up to the boats to draw lines over and the islands to punctuate it, as it so happens with the oases in the deserts that are formed on dry land.
In the last months we have lived confined for long periods and connected to others and the world through small doors, windows and shutters offered by technology. In that way, the medieval term of quarantine was reactivated, used with more or less precision to address the forced suspension of normal life that got us stuck to the keyboards and screens of computers, phones and tablets. This quarantine, a word that originated from an amphibious and ambivalent city, takes us back to the boats and islands with which I started this text. The word itself refers to the forty days that boats had to wait whilst anchored in front of Venice in order to protect the city from the black plague that decimated Europe in the fourteenth century.
It was also in a kind of quarantine, dependent for almost everything from those digital doors, sad partners for an open relationship with the world, that the works documented in this publication and presented in <http://com-fim.virose.pt>. were made. We hope that someday these projects will be able to come ashore, allowing them to escape an unexpected and imposed exile.
Miguel Leal
Freiburg im Breisgau, 07.07.2020
Barcos, ilhas e quarentenas
As ilhas sempre alimentaram o imaginário. Das ilhas desconhecidas ou desertas às ilhas longínquas perdidas no meio do vasto oceano, a ideia de ilha, como unidade autónoma e capaz de gerar uma realidade própria, é a imagem do utópico, do desejo, do fantástico ou do enigmático. Muitas vezes, em sentido contrário, essas mesmas ilhas serviram como lugar indesejado de exílio ou degredo para os criminosos ou párias deste mundo.
Também o barco, como uma espécie de ilha artificial, móvel e manobrável, funciona amiúde como lugar de excepção que se exclui da realidade das coisas do mundo. Embarcamos num barco para nos perdermos do mundo, do mesmo modo que aportamos a uma ilha para recomeçar tudo do nada, umas vezes por opção outras em exílio forçado, como acontecia com o castigo do degredo.
Por cima de tudo isto, as ilhas e os barcos não partilham apenas a sua condição de isolamento e o imaginário heterotópico da realização de um mundo fora do mundo. Umas e outros estão ligados porque a única forma de alterar a condição das ilhas é a abertura de rotas de navegação que rompam o seu isolamento, construindo assim constelações imaginárias entre pontos apartados pelos oceanos. Para as ilhas e barcos o deserto é o espaço em volta, o território sem coordenadas do mapa vazio de Lewis Carrol em Caça ao Snark. Cabe aos barcos traçar linhas sobre esse vazio e às ilhas pontuá-lo, como acontece com os oásis nos desertos que se formam em terra seca.
Nos últimos meses vivemos por largos períodos confinados e ligados aos outros e ao mundo por pequenas portas, janelas e postigos oferecidos pela tecnologia. Reactivou-se assim o termo medieval da quarentena, usado com maior ou menor precisão para nos referirmos a essa suspensão forçada da vida normal que nos deixou agarrados aos teclados e ecrãs de computadores, telefones e tablets. Esta quarentena, uma palavra com origem numa cidade anfíbia e ambivalente, leva-nos de volta aos barcos e ilhas com que começámos este texto, refere-se aos quarenta dias que os barcos tinham de esperar ancorados ao largo de Veneza para proteger a cidade da Peste Negra que assolou a Europa no século XIV.
Foi também numa espécie de quarentena, dependentes para quase tudo dessas portas digitais, que não são mais do que parentes pobres de uma relação plena com os outros e com o mundo, que se fizeram os trabalhos documentados nesta publicação e apresentados em <http://com-fim.virose.pt>. Esperamos ainda assimv que estes projectos possam um dia vir a terra firme, escapando assim ao exílio inesperado que lhes foi imposto.
Miguel Leal
Freiburg im Breisgau, 07.07.2020