Ruído animal (Uma aproximação à língua dos animais)

Para a exposição Ruído. Uma aproximação à língua dos animais, Museu da FBAUP, Porto, Maio de 2022.
(com Kaue Nery, Gonçalo Godinho, Sarah Gielisnki, Filipe Argiles, e Luís Signorini)

 

Ruído animal (Uma aproximação à língua dos animais)

Há nos rugidos dos animais selvagens qualquer coisa de indomável, primordial e, sobretudo, pré-linguístico. A perturbação trazida por um rugido pode ser assustadora, mas é antes de mais uma prova de força, uma presença que preenche um território e, ao mesmo tempo, o esvazia por completo. Nem sempre os sons animais são tão assustadores ou tão brutais quanto os rugidos. O canto dos pássaros pode ser harmonioso, musical e enleante. No entanto trata-se sempre de uma outra linguagem, repetitiva, familiarmente estranha e, até certo ponto, insondável. Daí a importância do xamã que faz o trânsito entre o humano e o animal, entre esses dois mundos que se ligam e afastam. Esse dom era também o mistério de Orfeu, capaz de encantar plantas, pedras e animais selvagens com a sua voz.

Sem sermos capazes de falar a linguagem dos animais, os seus rugidos são apenas ruído e essa é precisamente a etimologia desta palavra, pois ruído vem do latim rugire (rugir, roncar, berrar, gritar) ou rugitus (rugido). Na sua origem, o barulho, a desordem, o tumulto ou a perturbação do ruído são uma coisa animal, indomável e insondável. Com o tempo, o ruído passou a ser também o das máquinas, reunidas, tal como muitas vezes os animais, numa assembleia rumorejante e aparatosa que veio para nos assombrar.

Associamos de um modo geral ao ruído uma carga negativa e vemos na sua amálgama indistinta uma espécie de interferência comunicacional. Para além dos rugidos das feras, o ruído pode ser o das frequências eletromagnéticas indesejáveis, a sobreposição indistinta de sons e imagens ou qualquer outro distúrbio que venha perturbar a comunicação. São também ruídos os sons cavernosos, agudos ou sibilantes, animalescos e por vezes brutais que produzem os nossos órgãos. Vemos esses ruídos como obstáculos, podemos até dizer que são parasitas.  No entanto, para a prática artística, tão distante dos princípios da comunicação, o ruído é quase sempre uma bênção ou, no mínimo, uma matéria em bruto – como origem ou resultado dos gestos dessa prática – à espera de ser trabalhada. Como bem lembrou Deleuze, os gestos da arte opõem-se à palavra de ordem da comunicação, que é sempre uma forma de disciplinar e controlar. Pelo seu lado, os gestos da arte preferem talvez a interferência e a perturbação.

Na antecipação desta exposição duas dúvidas surgiram como problema.

Em primeiro lugar, como imaginar este empreendimento comum sem partilhar, digamos assim, uma língua? Com efeito, este foi um encontro ruidoso porque feito de línguas diferentes, de signos divergentes, como se uma assembleia de animais variados se reunisse para falar sem aviso ou preparação.

Em segundo lugar, como construir um território a partir desse ruído, já que o espaço expositivo não é mais do que isso, um espaço extensivo a que falta uma ativação, um território que se encontra por realizar? Sabemos bem que não cantamos da mesma maneira territórios diferentes e sabemos também que não há devir sem transformação, sem transformismo. Como chegar então a um território comum no meio desta mescla indistinta de diferentes devires?

Como coisa comum, estes foram os nossos problemas. Aquilo que aqui vemos é, pois, uma tentativa de construir um território no meio do ruído e, acima de tudo, uma aproximação à língua dos animais, dos seus cantos aos seus rugidos.

 

Miguel Leal
Maio 2022