The Missing Tree, 2017

Quando eu era pequeno, havia um grande choupo em frente ao meu quarto. Todos os dias sentia a sua presença. De manhã, no Verão, fazia sombra sobre a minha janela e, com o vento, ouvia o som cheio e ritmado das suas folhas em movimento. No Inverno eram os ramos, já despidos, que assobiavam e rangiam ao som do vento. E havia ainda os pássaros, muitos pássaros. Um dia, já não me lembro bem em que altura do ano, numa daquelas tempestades que à distância nos parecem vir de uma outra era, o choupo caiu, de uma vez, com estrondo, sobre o passeio. Plantaram depois uma nova árvore mas era ainda muito pequena e saí daquela casa antes de a ver crescer o suficiente. Depois desse dia parecia que vivia num outro lugar. Dormia de janela aberta e agora, logo de manhã cedo, a luz era demasiado intensa. Deitado na cama faltavam-me as sombras animadas sobre o tecto e as paredes, faltavam-me sobretudo os sons que me faziam adivinhar a presença daquela árvore cujas folhas, sempre que por sorte se esqueciam de a podar, chegavam a tocar os vidros da minha janela. No entanto, descobri depois que afinal a árvore não tinha desaparecido. Tinha-se apenas transformado. Continuei a lembrar-me dela e muitas vezes sentia até a sua presença, como uma aparição, como um fantasma amigo que me vinha visitar, só que já não a mesma árvore mas uma outra, mudada pelos trajectos entre o real e o imaginário.

Os jogos da memória são sempre jogos com os fantasmas, com a fantasia que caracteriza toda a relação com o fantasmático. No grego que dá origem à palavra, phantasma é uma aparição, um espectro. Convocar a memória seria assim quase sempre um jogo com os espectros do passado. Contudo, se pensarmos nesses jogos apenas como uma operação arqueológica estaremos talvez a esquecer o essencial. Os jogos da memória fazem-se tanto com o passado como com aquilo que há-de vir, porque os trajectos do imaginário projectam-se sempre no futuro, por vezes quase como um oráculo. O imaginário é por isso uma espécie de real em potência, virtual portanto, uma viagem feita de trajectos nómadas entre o passado e o futuro, entre o real e a imaginação.

Deleuze diz-nos que “uma viagem real não tem por si só a força de se reflectir na imaginação”, e diz-nos também que uma “viagem imaginária não tem por si só a força […] de se verificar no real”, concluindo que se uma viagem não é possível sem a outra, o imaginário e o real só podem ser vistos como um espelho móvel, duas partes de uma mesma trajectória. Desta forma, a imaginação é uma operação híbrida que junta ao objecto real uma imagem virtual, constituindo aquilo a que Deleuze chama “um cristal de inconsciente”. São esses cristais aquilo que se liberta nesses trajectos entre o real e a imaginação e, do mesmo modo, são esses cristais de inconsciente que se formam nos jogos da memória, dessa memória que recusa uma função meramente arqueológica para se constituir como um mapa intensivo e afectivo do mundo e das coisas do mundo.

Trabalhar num espaço como o da Casa da imagem, como acontece nesta exposição, incorporando os seus objectos, os seus espaços e, sobretudo, a memória que eles convocam, não poderia ser um exercício meramente arqueológico. Pelo contrário, encontramos aqui uma tentativa de construir um mapa intensivo e por vezes subtil dos cristais de inconsciente que se formam cada vez que os trajectos do real e imaginário se cruzam, cada vez que o imaginário inventa um futuro, como esse futuro que parecia estar à espera de acordar em cada uma daquelas salas, em cada um daqueles objectos

ML
Maio de 2017

Texto para o folheto da exposição de Serena Barbieri e Tânia Geiroto Marcelino na Casa da Imagem, Vila Nova de Gaia, Maio de 2017.