Hei-de deixar ao mundo uma obra de tal valor que há-de existir permanente no tempo.

Já pensei muito no assunto e já tomei as decisões necessárias. Estou muito perto de a acabar.

Primeiro julguei, ingenuamente, que a imagem seria mais intemporal e, por isso, mais eficaz. Mas rapidamente deduzi que, com os seus significados simbólicos tão próprios da época em que foi produzida, a imagem poderia facilmente ser mal interpretada. A imagem tem sempre uma dose de simplicidade que não me convinha neste projecto do absoluto.

O que quero é congelar um acontecimento, um momento histórico e sobre-humano, divino até, uma experiência dos limites da emoção, da destruição da racionalidade. A experiência do sublime hegeliano, na qual o reles mas sábio homem jubila perante visões apocalípticas.

Que melhor meio há para fazer isto tudo do que a música? A testemunha pode ser levada a percorrer um caminho ora de doces e românticas passagens, ora de avassaladores ribombares, num permanente nascer, viver, na maior tragédia e felicidade, e morrer, ora atravessado freneticamente por gigantes e estridentes massas sonoras, ora por abandono voluntário, ou por sacrifício moral e ritual, nas obscuros e densos acordes de mil sons.

Para que tudo isto resulte, é necessário que a obra seja sinfónica, e que se componha por tantos e tantos músicos que eles percam a sua qualidade de humanos, muitos mais dos mil que constituem a sinfonia de Mahler.  Estes têm de estar dispostos de tal modo que não sejam vistos e rodeiem por todos os lados os ouvintes. Esta obra dispensa e impossibilita a existência de um maestro, essa pretensiosa figura do controle. Nesta sinfonia não pode haver instrumentos solistas, nem cantores solistas, nem nada que revele qualquer individualidade por parte dos executantes. Se fosse possível, esses executantes não existiriam, mas a música tem a inegável limitação de ser feita por homens.

A sinfonia não permite qualquer tipo de improviso, o seu desenvolvimento está minuciosamente estipulado, e não pode ser alterado. Os músicos não podem levar partituras para a actuação, que deve ser previamente estudada, mas nunca tocada.

Todas as partituras devem ser destruídas no fim do acontecimento, para evitar que se estude aquilo que é incompreensível como escrita, e para que não se estabeleçam relações racionais e simbólicas forçadas que não seriam mais do que coincidências. É importantíssimo que a experiência não seja maculado por camadas que lhe sejam posteriormente acrescentadas, e que, de cada vez que a sinfonia é tocada, ninguém tenha a mais pequena ideia da natureza daquilo de vai experimentar. Apenas um exemplar, uma cópia, é poupado e mantido em segurança até que à próxima actuação.

E eu, o homem criador, hei-de ser esquecido, porque nenhum homem poderá imaginar que foi outro que produziu a mais total das obras de arte, ou seja, das verdades. Mas, não sendo homem, serei herói ou até deus, venerado por todos. No fim, eu vou ser a minha própria obra.

 

 

Bibliografia

Dahlhaus, Carl: “The Idea of absolute music”

Nietzsche, Friedrich: “Heritage of our times”

Bloch, Ernst: “The spirit of utopia”

Adorno, Theodor W.: “Philosophy of New Music”

Tolstoi, Leo: “Guerra e Paz”

Marx, Karl: “The Eighteenth Brumaire of Louis Napoleon”

Korstvedt, Benjamin M.: “Listening fot utopia in Ernst Bloch’s Musical Phylosophy”


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