Caminhando sobre vidro (2024)

Exposição no espaço Uma certa falta de coerência, Rua dos Caldeireiros, Porto, 06.12.24 > 24.01.25, com uma selecção de trabalhos entre 1990 e 2024.

Exhibition at the A Certain Lack of Coherence, Rua dos Caldeireiros, Porto, 06.12.24 > 24.01.25, with a selection of works from 1990 to 2024.

 

 O futuro às arrecuas

Quando caminhamos julgamos atravessar o tempo e o espaço. No entanto, o nosso movimento através do espaço não traz consigo o próprio tempo, mas apenas uma sua mais intensa manifestação, como acontece, a seu modo, no cinema. Na verdade, caminhamos mesmo quando estamos parados. A manifestação do tempo é cinemática também nos seus cortes abruptos, nas suas pausas, nas suas elipses, mas sobretudo no seu contínuo desdobramento, por vezes feito de avanços e recuos, de movimentos no tempo que nos levam numa viagem permanente em que nunca saímos do presente. Como dizia há muito tempo Santo Agostinho, há um presente passado, um presente das coisas presentes e um presente futuro, das coisas que hão-de vir. Viajamos sem sair do sítio, ou, pelo menos, sem sair do presente.

Dizendo-o de outra forma, caminhamos sempre às arrecuas, de costas para o futuro. Não temos como parar o tempo, mas também não temos como parar este movimento em que olhamos a todo o momento para trás ao mesmo tempo que recuamos para a frente. Por mais que aceleremos o passo ou que tentemos parar o curso das coisas, estamos sempre no meio desse fluxo contínuo do tempo. Às arrecuas, procuramos os sinais que nos permitem imaginar o tempo que há-de vir, como quem consulta um oráculo.

Ensinaram-me desde cedo que não há não como escrever ou falar sem verbos. Talvez por isso a palavra seja o verbo. Mas nem todos os verbos são iguais. Nem todos carregam a mesma simplicidade dos gestos mais básicos, como fazer, pensar ou andar… É por isso que o título desta exposição podia ser, sem mais: Fazendo coisas. Um verbo simples e um substantivo. Uma acção genérica que define o nosso agenciamento no mundo e um nome que no limite designa tudo o que existe ou pode ter existência, real ou imaginada. Contudo, o que o André e o Mauro me perguntaram, como faz o corvo do filme do Pasolini foi um onde vais? — amico, dove andate?, que eu interpretei como um por onde tens andado? ou o que tens feito? Responder a uma pergunta assim é algo que nos faz ver longe e, acima de tudo, adiante, ainda que caminhemos sempre de costas para o futuro. Foi por isso que pensei de imediato nesta ideia de caminhar, de caminhar sobre o vidro, como operação comum e literal dos meus processos de trabalho, mas também como figura do meu movimento e dos desdobramentos do meu trabalho ao longo de mais de 30 anos.

Fui sempre um mau gestor do tempo e, sobretudo, da memória futura do trabalho. Depois de feito o meu trabalho e montada a exposição, sobrevinha quase sempre um aparente desinteresse naquilo que tinha feito. Não naquilo que tinha acontecido, mas mais naquilo que tinha feito. Guardei e arquivei cuidadosamente muitas coisas, mas também fui deixando muitos trabalhos esquecidos nos lugares em que tinham sido feitos ou mostrados. Voltei a recuperá-los, em alguns casos, apenas anos mais tarde, repentinamente decidido a usá-los uma vez mais. Talvez por isso, depois de anos a produzir objectos, ou imagens tornadas objectos, o meu trabalho foi progressivamente perdendo corpo, criando outros desafios à preservação da sua memória e aos mecanismos do seu aparecimento. Quase imperceptivelmente, comecei a trabalhar mais para cada situação e a escolher meios que me permitiam no final guardar todo o trabalho num bolso ou numa caixa. Com algumas excepções, isso tornou-se quase num modelo de trabalho que, num momento como este, em que me pedem para olhar para o que fiz respondendo ao mesmo tempo à pergunta pasoliniana — dove andate? —, não resta muito mais do que descobrir alguns restos arqueológicos dessa prática e, a partir desses fragmentos, fazer algo de novo, andando para a frente caminhando às arrecuas ou, como gosto de dizer, pensando o passado futuro das coisas e, em particular, o passado futuro das imagens.

Miguel Leal

Afife, 5 de Dezembro de 2024

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The future walking backwards

When we walk, we think we are crossing time and space. However, our movement through space does not bring with it time itself, but only a more intense manifestation of it, as happens, in its own way, in cinema. In fact, we walk even when we’re standing still. The manifestation of time is also cinematic in its abrupt cuts, its pauses, its ellipses, but above all in its continuous unfolding, sometimes made up of forwards and backwards, of movements in time that take us on a permanent journey in which we never leave the present. As St Augustine said a long time ago, there is a past present, a present of things present and a future present of things to come. We travel without leaving the place, or at least without leaving the present.

In other words, we’re always travelling backwards, with our backs to the future. We have no way of stopping time, but we also have no way of stopping this movement in which we are always looking backwards at the same time as we are moving forwards. No matter how much we pick up the pace or try to stop things in their tracks, we are always in the middle of this continuous flow of time. Slowly, we look for the signs that allow us to imagine the time to come, like someone consulting an oracle.

I was taught from an early age that there is no way to write or speak without verbs. Perhaps that’s why the word is the verb. But not all verbs are the same. They don’t all carry the same simplicity of the most basic gestures, such as doing, thinking or walking… That’s why the title of this exhibition could just as easily be: Doing things. A simple verb and a noun. A generic action that defines our agency in the world and a name that ultimately designates everything that exists or can exist, real or imagined. However, what André and Mauro asked me, as the raven in Pasolini’s film does, was where are you going?amico, dove andate? – which I interpreted as where have you been? or what have you been doing ? Answering a question like that is something that makes us see far and, above all, forward, even if we always walk with our backs to the future. That’s why I immediately thought of this idea of walking, of walking on glass, as a common and literal operation of my work processes, but also as a figure of my movement and the unfolding of my work over more than 30 years.

I have always been a bad manager of time and, above all, of the future memory of my work. Once my work was done and the exhibition mounted, there was almost always an apparent lack of interest in what I had done. Not in what had happened, but more in what I had done. I carefully stored and archived many things, but I also left many forgotten works in the places where they had been made or shown. I came back to them, in many cases only years later, suddenly determined to use them again. Perhaps that’s why, after years of producing objects, or images becoming objects, my work gradually lost its body, creating other challenges to the preservation of its memory and the mechanisms of its appearance. Almost imperceptibly, I began to work more for each situation and to choose media that allowed me to ultimately store all my work in a pocket or box. With a few exceptions, this has almost become a working model that, at a time like this, when I’m asked to look at what I’ve done while answering the Pasolinian question – dove andate? -there’s not much left but to discover some archaeological remains of that practice and, from those fragments, to do something new, walking forward walking backwards or, as I like to say, thinking about the future past of things and, in particular, the future past of images.

Miguel Leal

Afife, 5th December 2024