Land art
(in Dicionário Crítico de Arte, Imagem. Linguagem e cultura, 2010)
http://www.arte-coa.pt/index.php?Language=pt&Page=Saberes&SubPage=ComunicacaoELinguagemArte
Miguel Leal
O termo Land Art designa um conjunto diversificado de práticas artísticas que, nas décadas de 60 e 70 do século XX, tomaram a paisagem como suporte de inscrição, veículo de transformação e modelo crítico. Sob esse nome — ou outros, como Earthworks, Earth Art ou Environmental Art — encontramos propostas por via das quais os artistas desafiaram a segurança do cubo-branco da galeria ou do museu para arriscarem transformar a paisagem num lugar de experimentação e invenção. As suas obras, geralmente site-specific, oscilam entre a escala sobre-humana e a pequena escala do um-para-um. No entanto, pela sua natureza ou por opção dos artistas, muitas sobreviveram apenas em registos documentais ou processuais. Do deserto aos espaços urbanos e industriais, da galeria ao museu, a Land Art revela a conjugação de motivações contraditórias e diz-se que expressa, com poucas excepções, uma ideia de paisagem que é fundamentalmente norte-americana.
Palavras chave: arte pública, escultura, paisagem, site-specific, viagem.
A Land Art é parte importante do processo de alteração dos paradigmas artísticos que teve lugar nesse período, respondendo simultaneamente a uma continuação crítica do modernismo e a uma tentativa de o superar. Não tendo sido um movimento organizado no sentido convencional do termo, existem, no entanto, traços comuns e cumplicidades entre aqueles que a praticaram, assim como uma produção teórica importante, com destaque para os escritos dos artistas Robert Smithson e Robert Morris[1]. A Land Art insere-se genericamente numa tradição que é a da escultura. Porém, combina de um modo radical as noções de espaço e de tempo, deixando-se contaminar pelas artes performativas e pela crescente conceptualização da prática artística. Por um lado, representa uma das faces do pós-minimalismo, na sua crítica ao formalismo e ao objecto, por outro, afirma-se na sua individualidade, problematizando noções como a de contextualidade, de site-specific ou de arte pública, no quadro de uma espacialização das políticas culturais. Com efeito, a Land Art responde ao modelo do campo expandido da escultura definido por Rosalind Krauss no final dos anos 70[2], justamente em resposta às práticas que desafiavam desde a década anterior o nomadismo, a aterritorialidade e a autonomização objectual da escultura modernista. A Land Art é pois, na sua ambivalência, mais um capítulo da recuperação crítica das funções tradicionais da escultura e da lógica do monumento — representar/simbolizar algo e marcar/definir um lugar —, mas também um importante contributo para a dissolução do próprio modelo escultural. Segundo Krauss, a escultura ter-se-ia tornado durante a década de 60 uma combinação de opostos, no jogo entre paisagem e não-paisagem, entre arquitectura e não-arquitectura. As obras da Land Art situam-se nesta terra de ninguém, neste território de intensa contaminação entre as artes e a hibridação das suas práticas, conjugando por vezes antinomicamente pureza e contaminação, natureza e cultura, romantismo e anti-romantismo. Com a Land Art procura-se a contaminação e a impureza, mas também uma ligação variável, orgânica e natural à terra. Deseja-se ao mesmo tempo a transformação da paisagem e a sua recuperação mítica. Se encontramos por vezes uma negatividade na relação de oposição entre os espaços urbanos e industriais e essas outras paisagens, puras e inóspitas, que simbolizam um território mítico, como é o caso do deserto ou da montanha, noutros momentos, por exemplo, descobre-se nas obras da Land Art uma força que se liberta dos (não) lugares entrópicos das paisagens industriais abandonadas e da consciência de que já não existem espaços puros (“there is no pure land”). É este jogo de opostos que impõe as contradições internas e a diversidade de práticas da Land Art, resultando por vezes em dificuldades insolúveis. Na verdade, os artistas da Land Art são na sua maioria americanos que desenvolveram o seu trabalho no cruzamento entre as práticas ancestrais de ligação à terra e os princípios da mecanização contemporânea, num retorno à vastidão do espaço que faz parte do seu imaginário colectivo. O deserto representa, no contexto norte-americano, a ideia de um território descomprometido e é aquilo que resta da mitologia do Oeste selvagem e inexplorado. Obras como Lightning Field (1977), de Walter De Maria, Double Negative (1969), de Michael Heizer, ou Amarillo Ramp (1973), de Robert Smithson, revelam essa mesma recuperação, assim como as intervenções que Dennis Oppenheim realizou sobre o gelo e a neve, noutros desertos, ainda que temporários. Aliás, em termos práticos, só locais assim permitiriam a concretização de um programa de acção que implicava frequentemente violentas intervenções de grande escala sobre a paisagem. Projectos como estes são característicos de uma primeira vaga da Land Art, que pode ser vista como um prolongamento, ainda que distanciado, de práticas como as do expressionismo abstracto americano, quer na escala como na ideia do poder dos grandes gestos nos quais o bulldozer toma o lugar do pincel[3]. Dá-se assim expressão às ideias de conquista e exploração que caracterizam a era industrial e nega-se uma visão romântica da paisagem ou, pelo menos, propõe-se um novo romantismo: a paisagem está ali para ser transformada e, se há nostalgia, esta é a da contaminação entrópica. Há, no entanto, propostas que não se inserem do mesmo modo neste entendimento mais viril das transformações que são impostas à paisagem. Nesse sentido, por exemplo, a crítica feminista à Land Art foi importante também para a sua reactualização (veja-se os casos de Ana Mendieta ou de Mierle Laderman Ukeles). Uma segunda vaga ligada à Land Art e aos Earthworks será talvez menos formalista e mais crítica face a esses grandes gestos de transformação da paisagem. Renovam-se assim algumas das motivações iniciais da Land Art, na sua tomada de consciência política, social e económica das profundas transformações contemporâneas da paisagem. Coexistem pois na Land Art uma visão profundamente anti-romântica e uma outra nostálgica de um éden pré-industrial. O entendimento romântico da paisagem é desprezado por artistas como Smithson, Morris ou Heizer, que a olham justamente de um modo a que podemos chamar anti-romântico. Para eles já não haverá qualquer pureza transcendental a encontrar na paisagem. Para outros, as suas preocupações reflectem-se por vezes no desejo de uma vida mais simples e distante da tecnologia, num retorno feliz à natureza que reclama uma herança ancestral na relação com a paisagem. Nestes modelos, com cambiantes, combina-se uma aproximação à paisagem como “espaço real” com uma antiga tradição de teatralização, modelação e subjectivação do território, que vai, por exemplo, do jardim oriental ao pictoralismo do sec XVIII, dos modelos pré-históricos à arte pré-colombiana. No epicentro destes desencontros – é, repita-se, a conjugação contraditória destes sentimentos que define a diversidade das práticas da Land Art – estabeleceram-se várias modalidades para o trabalho sobre a e na paisagem, que desenham uma teia densa de possibilidades que escapa a qualquer leitura mais rígida. De modo simplificado podemos enumerar cinco tipologias para essas intervenções, a que juntamos alguns exemplos: (i) projectos site-specific que utilizam os materiais do local para criar novas sensações ou modificar a paisagem (Spiral Jetty, de Robert Smithson – Fig.1); (ii) propostas que importam para o local de intervenção elementos ou construções que lhe são estranhos (Perimeters/pavillions/Decoys, de Mary Miss, ou Sun Tunnels, de Nancy Holt – Fig.2); (iii) acções de carácter performativo na paisagem (Ana Mendieta – Fig.3); (iv) outras actividades de carácter colaborativo ou socialmente empenhadas que têm lugar na paisagem (ver Alan Sonfist); (v) objectos, registos, desenhos, fotografias, filmes, vídeos e textos como projecto ou memória processual de intervenções na paisagem, ou como construção de territórios imaginários (Dennis Oppenheim – Fig.4), Robert Smithson ou Richard Long. É ainda possível encontrar a combinação de duas ou mais destas tipologias numa mesma obra. Em resumo, a Land Art caracteriza-se por intervenções que marcam, indicam, atravessam, ou cartografam o território, inventando a paisagem e transgredindo as suas noções convencionais; estas práticas espaciais são geralmente site-specific e implicam a apropriação de lugares pré-existentes, olhando para a paisagem como entidade em construção. Para muitas das obras — e algumas delas podem ainda hoje ser visitadas — a experiência directa da escala e a relação com o lugar são fundamentais. A ideia de viagem, assim como o princípio fenomenológico de que o movimento é um modo de mediação e construção do espaço, caracterizam a experiência dessas obras, numa conjugação complexa das relações entre corpo, tempo e espaço. Contudo, um dos paradoxos da Land Art é que, apesar da sua óbvia materialidade e, por vezes, da sua escala avassaladora, a sua presença física é frequentemente fantasmática, sobrevivendo apenas em registos documentais ou processuais. Na Europa, os mais destacados representantes da Land Art serão os britânicos Hamish Fulton e Richard Long, que se encontram mais próximos de uma longa tradição ligada ao acto de caminhar como experiência da paisagem. Para estes artistas o caminhar é espaço de enunciação ou enunciação do espaço, uma realização espacial do lugar através de derivas e improvisações, algo que é também característico de outras propostas da Land Art. Com Richard Long as inscrições no terreno são delicadas ou efémeras, dando-se uma maior importância à documentação das caminhadas ou à materialização dessa experiência em objectos que evocam formas arquétipas, construídos com materiais recolhidos no meio natural (Fig.5, e fig.6). Hamish Fulton radicaliza essa fórmula auto-denominando-se “walking artist”. e propondo-se a não deixar mais do que pegadas e a não recolher mais do que fotografias. À semelhança de Long, com quem colaborou por diversas vezes, a apresentação do seu trabalho combina imagem e texto como reconstrução dos percursos percorridos a pé, constituindo um excelente exemplo da convivência das antinomias e paradoxos a que fizemos referência. Um olhar retrospectivo sobre a Land Art mostra-nos que esta foi rapidamente incorporada pelo sistema das artes, construindo a sua própria mitologia e normatividade, apesar da aura transgressora. Os grandes meios logísticos e financeiros exigidos pelas intervenções de maior porte, a par da sua espectacularidade, também contribuíram para essa institucionalização. A partir do início dos anos 80, a Land Art, tal como a descrevemos aqui, já não existia, pelo menos no registo geracional que teve ao longo de cerca de duas décadas. Sobreviveu, é certo, através da obra de alguns artistas, tal como existem ainda hoje práticas que reclamam essa tradição. Contudo, já não parece possível propor programas semelhantes, mais ou menos românticos, mais ou menos ingénuos na sua transformação ou apropriação da paisagem. Mais do que nos modelos que a mimetizam, a importante herança da Land Art reflecte-se hoje na afirmação das práticas site-specific, em alguma da chamada arte pública e, no geral, na arte que reclama uma crítica da ideia contemporânea de paisagem.
[1]Ver MORRIS, Robert (1993), Continuous Project Altered Daily: The Writings of Robert Morris. Cambridge (Mass.), MIT Press; assim como SMITHSON, Robert (1996), Flam, Jack D. (ed.), Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley, University of California Press;
[2] KRAUSS, Rosalind (1979), ”Sculpture in the Expanded Field”, in FOSTER, Hal (ed.), The Anti-Aesthetic, Essays on Postmodern Culture, Seattle, Bay Press, 1983, pp. 31-42.
[3] Expressão utilizada por Robert Smithson para se referir à obra de Robert Morris (op. cit., p. 56).