Texto de Sara Castelo Branco para a folha de sala da exposição no Espaço Mira, Dezembro de 2014
Manual de Sobrevivência (Figuras) traça-se num longo corredor flanqueado por projecções de fotografias, múltiplas manchas de luminescência, numa montagem caleidoscópica. Inscrevendo-se no campo semântico da luz, as imagens assomam e findam-se através dela, assentando sob o domínio da electricidade, que dita o desaparecimento ou a revelação da exposição.
Manual de Sobrevivência (Figuras) apresenta sete projecções simultâneas, figurando fotografias da autoria do artista, e outras imagens apropriadas por este, pertencentes a um arquivo de astronomia dos anos 20 e 30. A maioria das fotografias são afectadas por uma pulsão e viragem de cor, que apela a uma harmonia cromática, e, onde se intensificam os binómios da convergência e da dispersão, da luz e da sombra. A exposição é composta por três imagens fixas e por quatro séries fotográficas, que vão sendo interpostas num período intercalado de quatro dias, inscrevendo uma circunstância relacional entre imagens da ordem do mnemónico, e, tracejando igualmente uma possibilidade contínua de recriação expositiva.
Os elementos lunares, solares e astrais, cromaticamente metamorfoseados, dialogam com três imagens de permanência fixa, que se diferenciam – autoral e figurativamente – das restantes: uma imagem que domina o espaço e convoca uma palavra espacializada, o termo “impossível”, expressão que dialoga com a índole da exposição; uma espécie de fonte-foguete azul, projectada indirectamente pelo reflexo de um pequeno espelho; e, a escultura de uma cabeça animalesca e primitiva, que, do escuro, avança sobre nós, sendo a única fotografia que se duplica pela comparência de um espelho simétrico a si, criando um duplo e um corredor paralelo – a abertura impossível para um espaço que não é real. Neste sentido, a estância da “impossibilidade” circunscreve toda a exposição, conciliando-se com a denominação da exposição, que alude à descrição no plano figurativo, de algo que não tem expressão exequível pela substância frásica.
Neste sentido, as fotografias apelam a estâncias como o indeterminado, o irrealizável e o irreal que consentem com uma composição inconclusa das imagens – como a incompletude da fonte-foguete, da lua ou da iluminação do círculo que clareja os dados – dando ao observador a alternativa de reconstituição. Por outro lado, as imagens apelam à relação entre um microcosmo e um macrocosmo, citados numa linha cronológica de vida, cuja linearidade surge no traçado horizontal de uma sequência de dados. São uma série de números, que saem da superfície alumiada, e continuam, infinitamente, para um passado ou um devir velados, mencionando uma aleatoriedade que se associa à passagem do tempo, ao destino e ao jogo. Para o artista trata-se de “uma forma de ligar e pensar o corpo e as imagens, a memória do corpo e das imagens. É uma exposição sobre o corpo, sobre as marcas no corpo, sobre o corpo como arquivo e memória.”
Manual de Sobrevivência (Figuras) cita outras práticas de representação, detendo um temperamento pictórico, mas, sobretudo, um predicado cinematográfico, na medida em que o artista opera uma visão sobre as imagens centrada na luz. Por outro lado, a presença pausada das imagens activa-se na deserção de um entendimento convencional da montagem cinematográfica, concebendo antes uma montagem sincrónica. A positivação do cinema – e a afirmação da potência do observador como reconstrutor da imagem – torna-se ainda inteligível pela disposição das projecções no espaço, que obrigam o visitante a perfurar os focos de luz, recriando as figurações sombreadas de um teatro de sombras. O espaço, o espectador e os dispositivos tornam-se intrínsecos e indivisíveis.
A montagem entre imagens emerge de uma organização intuitiva e experiencial, suturando-se numa ambiguidade, vinculada ao carácter polimórfico das percepções de cada observador. A potência da duplicidade imagética – da sua capacidade em convocar diversas figurações e sentidos – sitia-se num real que se desenvolve num movimento que o faz diferir de si mesmo: fantasmático e latente, por cumprir-se na subjectividade de cada observador. Desta forma, podemos falar de imagens que versam um campo de “aparências”, como a transformação de uma constelação ou cometa em fantasma.
Em Manual de Sobrevivência (Figuras), o real e o fantástico sobrepõem-se, transformando o olhar em visão, análogo àquilo que Rimbaud chamava de vidência, de segunda visão. Portanto, numa jornada entre o conhecido e o desconhecido, o maneio do artista está numa subtracção sobre o dispositivo, aludindo a uma volubilidade fantasmática, ao cíclico e à passagem do tempo, a uma indiscernibilidade entre o real e o irreal, ao principio e ao fim do mundo, mas, sobretudo, à capacidade potencial das imagens, que aqui são “fugazes, fantasmas de luz, mas agarradas ao espaço como uma pele.”