Em primeiro lugar, comecemos por incidir a nossa atenção na comédia norte-americana “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985) de Woody Allen.

Estamos diante a celebração de um teatro filmado. Um filme dentro de um filme, dois mundos semelhantes que partilham os mesmos princípios mas em dimensões diferentes. Ambos funcionam no mundo da representação, porém, tal como para nós é impossível um actor saltar da tela de projecção, para Cecília a mesma situação é igualmente incrédula e difícil de explicar. Eu vi o filme. Não foi exactamente o mesmo filme que a protagonista viu. Foi antes uma análise pessoal e intrínseca de um momento ambíguo. Por instantes, senti-me no mesmo espaço restringido da personagem. Senti-me eu mesma uma personagem tal como os momentos ambíguos nos proporcionam – derrapagens.

Aquilo que podemos ver é um quase nada que quando contado no filme se traduz numa ficção, num trocadilho de imagens que condiciona qualquer espectador que vê um filme. Na verdade, o que vemos nesta história é o refúgio que Cecília procura no cinema todos os dias depois do seu trabalho.  Surge então uma luta que pretende estabelecer a linha entre a fantasia e a realidade. Descobre-se que, por vezes, esta linha está apenas à distância de um suspiro, de um olhar cruzado. Aqui, os nossos olhos consideram aquilo que os olhos de Cecilia vêem segundo uma compaixão incorporada no próprio cinema – nós vemos a imagem conforme o que lemos ou o que ouvimos. A magia do devaneio contrapõe-se agora à decepção da realidade. Finalmente, o sonho ganha corpo e passa a funcionar como um escape a amargura de viver. No entanto, não deixemos de salientar que até a ideia de construção do real contém sempre um sopro de ficção. A história limita-se a ficar na tela, como se nunca se tivesse realizado – uma acção quase inexistente. O que existe é o filme, o espectador e algo mais que costuma fluir entre a tela e o próprio espectador. Uma evocação apaixonada entre a história e o que a observa – ideia de simbiose. Portanto, o que há para ver é apenas cinema.

Os temperamentos fictícios em torno da paixão e da projecção que o espectador observa sugeridos por Woody Allen, jogam com a condição daquele que vê um filme. Até ao momento, o espectador mergulhava na história do filme. Agora, é o próprio filme que sai da tela e se dirige à plateia, vivendo ao lado do espectador. Numa segunda instância, Allen proporciona-nos igualmente uma narrativa segundo uma versão mais sarcástica como acontece no filme “Zelig” (1983). Um ‘pseudo-documentário’ de carácter irónico que decorre sob um fluxo de hipóteses.  Neste filme, a correlação entre fotografia – figura fotografada traduz uma ‘imagem cega’. Por sua vez, a cegueira simula estar inserida num tempo que não lhe pertence. Finge ser uma fotografia antiga para expor excertos de histórias passadas – a fotografia jamais se singulariza. Nasce a “personagem-camaleão” ou melhor a “não-pessoa”. Segundo esta conciliação, o texto e a fotografia estruturam a visão através uma outra convenção. O espectador no cinema pode fazer como o leitor, sair da imagem para o texto ou voltar do texto para a imagem. E a cada novo olhar despertar uma nova informação no sentido visual. Os gestos rápidos descrevem a narração corrida. O que se funde é a expressão corporal e o ritmo lento do deleite brando da imagem. O “homem-camaleão” representa uma metáfora dos padrões convencionais embutidos nos nossos dias devido ao seu tema se manter bastante actual. Consiste num molde, num aconchego ao ideal de vida comum da sociedade contemporânea. Talvez a personagem mais individual e que mais facilmente se consiga passar como despercebida.

Atenção que mais do que um documentário, o cinema é uma manipulação de som e imagem.

Antes de me dar conta que vejo o filme e que as personagens são reais, eu vejo o filme. As personagens só não me vêem a mim porque está  escuro deste lado do ecrã.

Ir ao cinema implica confirmar uma dimensão diferente da nossa realidade num mesmo espaço e tempo mas sob um luz diferente – a luz do projector que incide na tela. Em Allen, os meus olhos vêem a luz que transforma em realidade o que vejo no filme. Por fim, toda esta expressão de delírio transforma-se em imagens e sons como dirige a base central de todo o cinema.

 

Bibliografia

Apontamentos das aulas de Som e Imagem – Docente Miguel Leal

CHION, Michel. A Audiovisão, Som e Imagem no Cinema.  Lisboa, 2011. Edições Texto & Grafia 

Webgrafia

http://www.escrevercinema.com/Allen_Zelig.htm

http://cinegnose.blogspot.pt/2011/11/woody-allen-conseguiu-transformar-o-seu.html

 

Zelig – Teaser


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