Perder a cabeça (e não saber onde está o corpo)

Texto para o catálogo Objectos prescritos, Porto, Ordem dos Médicos, 2012, pp. 8-15, uma exposição da Sofia Palma, da Raquel Azevedo Moreira e do Hernâni Reis Baptista.

 

 

 

 

Perder  a cabeça (e não saber onde está o corpo)

Miguel Leal

in Objectos prescritos, Porto, Ordem dos Médicos, 2012, pp. 8-15.

 

 

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Louis Villeneuve, Matière à réflection pour les
jongleurs couronnées
, gravura, 1793 (pormenor)

 

René Descartes, o filósofo da separação entre o corpo e a alma, morreu de forma misteriosa na cidade de Estocolmo, em 1650, onde se encontrava ao serviço da rainha Cristina da Suécia. Enterrado quase em segredo, o seu corpo viria alguns anos mais tarde a ser reclamado pelos franceses. Levado para Paris, o corpo ficou depositado em Sainte-Geneviève até que, muito mais tarde, em 1792, os ventos revolucionários se decidiram pela sua transferência para o Panteão Nacional. Exumado então o corpo, descobriu-se com surpresa que o crânio tinha desaparecido. No meio da carnificina preparada com o auxílio da muito republicana e novel máquina de cortar cabeças do Dr. Guillotin, Descartes também se via decapitado, à semelhança de Louis XVI ou de Robespierre. O pai do dualismo tinha pois perdido a cabeça. O crânio terá sido roubado ainda na Suécia, na altura da primeira exumação, e só reapareceria em França já em 1821, pela mão de Berzélius, o químico sueco. Em 1931, este crânio, que disputa com vários outros a sua autenticidade, foi integrado na colecção do Musée de l’Homme, em Paris, onde ainda se encontra hoje, exposto como relíquia da evolução humana.

Descartes não só perdeu a cabeça como esta nunca mais soube do corpo, numa ironia subtil do destino que muito teria divertido Julien Offray de La Mettrie, o autor de L’Homme-Machine (1748), uma obra que responde directamente ao modelo dualista de Descartes e recusa a separação entre o corpo e a mente. La Mettrie  nega assim a diferenciação cartesiana entre o homem e a besta; em alternativa, propõe-se pensar o corpo como uma máquina integral. Para o autor de  L’Homme-Machine, o corpo humano é uma espécie de autómato imenso e complexo, não apenas no seu funcionamento mas também no modo como nele se estabelece o comércio entre os músculos e a imaginação, “pois o cérebro tem os seus músculos para pensar como tem as pernas para andar”. Não por acaso, o materialista La Mettrie morreu em delírio depois de ingerir uma grande quantidade de pâte de faisan aux truffes, perdendo a cabeça pelo estômago, literalmente.

 

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Paul Richer, Busto de Descartes com molde
incorporado do seu crânio, gesso, 1912.

Perdemos a cabeça quando perdemos a razão, quando nos tornamos irrazoáveis e o nosso corpo parece não ter dono; ou será que perdemos a cabeça quando é o corpo que manda, quando a cabeça nos desce até às entranhas e caímos em delírio?  Perder a cabeça é perder o tino, é talvez como delirar acordado ou esquecer tudo excepto o nó no estômago que nos impede de pensar e nos turva o raciocínio. Diga-se ainda assim que podemos perder a cabeça e ver tudo mais nítido, podemos perder a cabeça e sentir os cheiros como nunca antes os sentimos, e descobrir que reconhecemos afinal cada poro da nossa pele e que ouvimos aquilo que mais ninguém ouve. Perder a cabeça é sentir a língua seca mas esquecer o porquê das coisas, como se cada accão do nosso corpo fosse a de um outro corpo, como se a nossa cabeça não nos pertencesse. Perder a cabeça é ficarmos fora de nós, estarmos em nós como se estivéssemos num outro, em muitos outros. Na verdade, quando perdemos a cabeça é também o corpo que perdemos, é também no corpo (e na cabeça) que nos perdemos. Perder a cabeça é descobrir a experiência intensiva  das coisas do mundo, é ficarmos fora de nós para nos reencontrarmos finalmente. Só um corpo e uma cabeça separados de nós, só um corpo e uma cabeça à deriva poderiam voltar assim como coisa familiar, ainda que estranha e irrazoável. Só um corpo e uma cabeça juntos na sua deriva saberiam ser irrazoáveis e, ao mesmo tempo, (quase) nossos.

 

 

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O crânio de Descartes, Musée de L’Homme, Paris (imagem de arquivo).

Aparentemente, nunca tivemos tanto corpo quanto hoje. Conhecemos o corpo como nunca o tínhamos conhecido antes. Mapeámos cada célula do nosso corpo e somos capazes de ver uma imagem do seu interior como se sempre o tivéssemos visto assim.

A recente imagiologia médica — herdeira da quase obsoleta radiologia do final de oitocentos — oferece-nos o corpo como imagem, oferece-nos o nosso corpo como paisagem.  No entanto, esse é um corpo quase abstracto. Seccionado por Tomografias Axiais Computorizadas ou modelado por Ressonâncias Magnéticas o nosso corpo é-nos oferecido como se fosse um outro corpo. A imagem quase  abstracta deste corpo da imagiologia médica é por vezes tão codificada quanto a de um mapa tradicional. Semelhante mapeamento do corpo é pois extensivo na sua natureza. No entanto, esse corpo pode ser delirante ou mesmo um fantasma que se recusa a aparecer nas imagens, escapando a todo o controle. É por isso que se pode dizer que a  imagiologia médica inventa um corpo que só descobrimos verdadeiramente enquanto coisa intensiva quando o sentimos a partir das nossas entranhas.

A permanente (re)mediação do nosso corpo parece familiarizar-nos com os seus segredos, no entanto também podemos pensar que nunca antes o corpo nos pareceu tão estranho ou tão distante. Ao mesmo tempo que o corpo e as suas imagens nos assaltam o quotidiano, há uma domesticação do nosso olhar que se faz pela constante presença das imagens do corpo e das suas entranhas, em cada noticiário, em cada série televisiva ou em cada busca na internet em que tudo parece concorrer para levar um pouco mais longe o fim da capacidade de imaginarmos o corpo como ele é. E como a imaginação é coisa secreta e em roda livre quanto menos segredos menos imaginação, quanto mais imagens menos delírio. Ou será ao contrário?

As imagens podem ser delirantes, é certo, mas há imagens delirantes e há imagens razoáveis, há imagens que nos fazem perder a cabeça e outras há que nos deixam indiferentes. Uma imagem do corpo pode não ter corpo e sem corpo não há como perder a cabeça, pois, é preciso lembrar, não se pode perder aquilo que não se tem.

 

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David Cronenberg, Irmãos inseparáveis [Dead Ringers] (1988).

 

Os instrumentos médicos são instrumentos da razão científica, são a cabeça cartesiana de um corpo ausente. Ou não. Os instrumentos médicos podem ser a memória persistente desse corpo ausente e irrazoável que devem perscrutar, revelar, cortar, penetrar, arrancar, abrir ou fechar. Sem imaginação não há memória e são esses instrumentos que activam a nossa imaginação e nos fazem recordar um corpo desaparecido.

Tal qual um molde ou negativo, esconde-se em cada instrumento médico, aparentemente tão razoável na sua aparência asséptica, a irrazoabilidade e a intemperança do corpo que dita a sua existência. Longe ou perto desse corpo, alturas há em que são esses instrumentos médicos que ganham corpo próprio, seja por osmose seja por mutação, tão instável e delirante quanto o nosso. Para isso bastará recordar o caso-limite dos instrumentos cirúrgicos do filme Irmãos Inseparáveis (1988) de David Cronenberg, tão mutantes quanto o corpo ao qual se destinavam.

E o que dizer dos instrumentos médicos que são depositados em todos os mausoléus da História da Medicina deste mundo, nesse sítios onde os únicos corpos são os seus? Obsoletos e longe do corpo do qual são o molde e o negativo, estes instrumentos tornam-se eles próprios menos objectos da ciência, ou da razão científica, do que corpos imperfeitos e irrazoáveis. Acordar estes corpos do seu torpor é fazê-los perder a cabeça, é fazê-los sair de si, é fazê-los entrar em delírio entre gritos e murmúrios que só um corpo irrazoável e sem cabeça poderia oferecer-nos.