Os fantasmas não são apenas os espectros de pessoas ou animais desaparecidos que por vezes nos vêm visitar ou assombrar. Podem ser mais simplesmente uma visão que nos acompanha ou uma aparição que se forma a partir da força da nossa imaginação. Estes fantasmas — palavra que me serve aqui para designar toda uma família de entidades, dos espectros aos espíritos e outras aparições —manifestam-se aos vivos de forma visível ou através de outros sinais. Penso neles como personagens solitárias que escapam a todas as formas de representação. Aliás, a história dos fantasmas — se é que existe uma história que lhes seja própria — confunde-se com a história da representação e, em particular, com a história das imagens. Todos os fantasmas foram um dia perseguidos pelos fazedores de imagens, como se só a sua corporização em imagem, em coisa visível, pudesse confirmar a veracidade da sua existência.
Um bom exemplo desse conflito entre o visível e o invisível encontra-se na história das imagens técnicas modernas. A ilusão de uma neutralidade que seria própria dessas imagens, da fotografia ao cinema, da radiologia ao vídeo, entre tantas outras, alimentou o desejo de dar um corpo ao incorpóreo, de oferecer uma figura (de dar a ver) ao invisível.
Mas, na verdade, como dar um corpo a um espectro, como confirmar a veracidade de uma aparição fantasmática?
Desde a antiga catóptrica, essa ciência dos espelhos, que a produção técnica de imagens não deixou de se associar à invenção de fantasmas ou, pelo menos, à possibilidade de lhes dar um corpo, ainda que fugaz. Os reflexos e as sombras, as imagens projectadas ou, em geral, todos os dispositivos de ilusão ou fabricação ópticas foram sempre instrumentos importantes na criação de fantasmagorias. Do mesmo modo, é de também de fantasmas que falamos perante a mera suposição, tão pragmática e científica, de que possamos acordar o infinitamente pequeno do mundo microscópico ou as estrelas distantes — tão distantes que talvez já tenham desaparecido —, ou de dar a ver o mais recôndito do nosso corpo, como prometeu desde o início a radiologia. Esta última, alargada a uma refinada imagiologia médica que inclui a ecografia, a ressonância magnética ou a tomografia axial computorizada, parece tudo permitir, incluindo a revelação dos fantasmas mais secretos do nosso corpo, dando uma figura àquilo que não era mais do que coisa pressentida ou mero rumor interior. É assim que redescobrimos não apenas os órgãos que julgávamos conhecer mas sobretudo uma paisagem desconhecida e habitada pelos nossos próprios espectros.
Ora, falar de fantasmas é também pensar os seus lugares de eleição. Se os nossos fantasmas são antes de mais entidades que connosco partilham um mesmo espaço e, tantas vezes, um mesmo corpo, há depois todos esses outros fantasmas que parecem agarrados aos lugares que outrora habitaram. É talvez por isso que associo as casas-museus a lugares assombrados. Essas casas que preservam a memória de pessoas desaparecidas são uma espécie de monumentos funerários embora disfarçados de outra coisa, mausoléus repletos de objectos que aí foram depositados com a ideia de acordar os mortos. Julgar-se-ia pois que tais objectos, deixados em testamento com esse fim, se bastariam a si próprios como índices e prova de vida de gente há muito desaparecida. No entanto, os fantasmas têm vida própria e raramente respondem quando os chamamos e, nesse particular, dificilmente serão os objectos óbvios e inertes que preenchem tais mausoléus a cumprir esse desígnio. É preciso saber como acordar os fantasmas e trazê-los à nossa presença. Fazer regressar a estas casas-mausoléus os seus próprios fantasmas obriga a abri-las ao mundo exterior e a tudo aquilo que só os vivos sabem fabricar, respondendo aos fantasmas na sua própria língua: a língua assombrada das imagens e dos seus dispositivos técnicos, talvez a única língua capaz de os levantar da tumba…
Para a exposição da Bárbara Castelo Branco na Casa Oficina António Carneiro (Outubro de 2013)