Selva camaleónica
Henri Rousseau, conhecido pelas suas pinturas de selvas e outras paisagens exóticas, nunca saiu de França em toda a sua vida. Pintou a partir de imagens que circulavam, do que via nos jardins botânicos ou zoológicos e das histórias que ouvia sobre lugares distantes e secretos. Pintou também imaginando a selva ali mesmo, nos subúrbios de Paris. Excessivas e irreais, as selvas tropicais de Rousseau, habitadas por animais mais ou menos ferozes, foram assim o resultado de uma imaginação setentrional e oitocentista.
Por qualquer razão que não sei explicar, antes mesmo do título desta exposição, vieram-me à cabeça algumas imagens. Todas elas, de um modo ou de outro, estavam também ligadas à selva ou, pelo menos, a uma certa encenação ou ideia do que pudesse ser a selva. Lembrei-me então dos velhos livros de estampas que folheava em miúdo, até antes de saber ler, e que me levavam para outros lugares. Lembrei-me das selvas do W. Burroughs, caóticas e virais, onde viviam espécies perdidas e criaturas híbridas. Lembrei-me dos mundos esquecidos onde habitavam seres estranhos e nos quais se adivinhava ainda a desmesura dos corpos e a indistinção entre o reino animal e o vegetal. Lembrei-me sobretudo da infinita capacidade de transformação que as coisas do mundo revelam a todo o momento, ultrapassando o simples jogo das aparências para nos oferecerem outra coisa, mais profunda e insondável. Só então surgiu a camaleónica e, depois, os desenhos que abrem este catálogo.
Camaleónica é a condição do camaleão ou daquilo que se comporta como tal. O camaleão é um réptil de olhos salientes e longa língua. Muitas espécies de camaleões têm a capacidade de mudar de cor, reagindo a ameaças externas através das suas próprias alterações de humor, do medo à irritação, tornando-os mestres da camuflagem e da invisibilidade. A condição camaleónica é, pois, a da mudança, da transformação, quase como se o mundo se viesse alojar na própria pele, quase como se o mundo habitasse o nosso corpo. Nesse processo de transformação, há uma exterioridade que se define a partir de dentro e que é acima de tudo uma experiência da multiplicidade. Um que é muitos, muitos que são apenas um. Mas não nos enganemos. Não se trata de replicar ou de projectar o mundo em nós ou no corpo mas antes de nos tornarmos mundo, numa espécie de mutação imperceptível que é também um devir-outro, uma experiência de alteridade.
Sem uma hipersensibilidade às coisas do mundo essa experiência da alteridade não parece possível. Quando falo de hipersensibilidade, refiro-me precisamente à capacidade mediúnica que permite que as coisas nos atravessem, que permite que sejamos um lugar de trânsito. No limite, essa hipersensibilidade pode ser descrita como uma experiência telepática, um tremor que nos atravessa o corpo e nos faz compreender aquilo que nos toca. Veja-se essa qualidade especial dos corpos que tudo sentem mas que, por vezes, não podem ser tocados, justamente porque sentem demasiado. Tais corpos, na sua hipersensibilidade, desejam o mundo mas ao mesmo tempo receiam-no. São tão sensíveis que só sentem o mundo tornando-se mundo e, em alguns momentos, essa experiência é tão intensa que se torna insuportável.
Ora, para ser verdadeiramente consumado, esse movimento contraditório, que aproxima tanto quanto repele aquilo que nos é estranho, exige de nós um intenso processo de transformação camaleónica que implica uma resistência a toda a cristalização, seja da identidade, das relações, dos lugares ou das memórias. Só assim nos aproximaremos do(s) outro(s) e do que nos é estranho.
Esse movimento tem talvez um nome: devir-imperceptível.
E o que pode ser esse desejo de imperceptibilidade, esse movimento em direcção ao mundo?
Em primeiro lugar, devemos recordar que por natureza o próprio movimento é imperceptível, isto é, todo o movimento implica uma certa indefinição perceptiva. O movimento é aquilo que só percebemos na relação entre dois tempos, o antes e o depois. Há movimento quando percebemos essa deslocação. No entanto, o movimento foi aquilo que justamente não percebemos. Sabemos que houve um trânsito mas não temos como explicá-lo, não temos como suspender o movimento no momento em que este se faz. Por isso, o movimento é mágico e encantatório.
Deleuze e Guattari falam-nos da relação entre o imperceptível, o indiscernível e o impessoal; dizem-nos que essas são condições que implicam a transparência. Eu diria que são condições que se ligam à invisibilidade e a uma função deceptiva: não ser aquilo que se espera mas sim aquilo que se deseja.
Devir-imperceptível será assim a consumação de um desejo de transformação, de se confundir com o mundo, de se tornar mundo, todo o mundo. Dito de outro modo, esse desejo de imperceptibilidade é um desejo de intensidade perceptiva. De tanto se querer sentir o mundo tornamo-nos mundo e fazemos mundo. Esse é um desejo que não implica reproduzir o mundo mas sim fazê-lo, numa fórmula cósmica que se pode aproximar da feitiçaria.
As imagens que me assaltaram o espírito antes mesmo de surgir esta exposição, as imagens da selva, têm esse carácter mágico e feiticeiro que se pode associar à transformação camaleónica. Se há então alguma coisa que possa definir semelhante transformação é justamente a mesma intensidade perceptiva e mágica que encontramos no desejo de imperceptibilidade, e esse é, como vimos, um desejo de intensidade na relação com as coisas do mundo.
Sejam bem-vindos à selva camaleónica.
Miguel Leal